Há pouco, num encontro ocasional, dizia à minha amiga Lídia que iria relembrar uma estrofe de Camões que guardo desde os tempos do liceu e nunca me cansei de a recitar em encontro de amigos. Trata-se do melhor e mais fino humor que conheço e, se pensarmos que foi escrita no séc. XVI, mais deslumbrante se torna.
Criado que ficou o suspense, por agora, vou apenas aproveitar o tempo de festejo da liberdade que emana de Abril, para divagar sobre uma das formas como aquela se pôde exteriorizar, ainda em Camões. É que, de forma breve, também falámos de liberdade. Então, à minha mente, veio a ainda próxima censura do Estado Novo, ou a mais longínqua do Pretório da Santa Inquisição em cujo contexto, Frei Bartolomeu Ferreira, censor do Santo Ofício, redigiu o parecer que deu luz verde à publicação dos Lusíadas.
O Censor conheceu versos de luxúria, os roxos lírios de Vénus, o incontido desejo sexual de Júpiter, a bela Tétis, as musas, sereias e tágides:
Vestida üa camisa preciosa
Trazia, de delgada beatilha,
Que o corpo cristalino deixa ver-se,
Que tanto bem não é para esconder-se.
(Canto VI, 21)
Sigamos estas deusas e vejamos
Se fantásticas são, se verdadeiras!
Isto dito, velozes como gamos,
Se lançam a correr pelas ribeiras...
(Canto IX, 70)
No fim, tudo lido e ponderado, concluiu: “Vi por mandado da santa & geral inquisição estes dez Cantos dos Lusiadas de Luis de Camões, dos valerosos feitos em armas que os Portugueses fizerão em Asia & Europa, e não achey nelles cousa algua escandalosa nem contrária â fe & bõs custumes...”
Ficou como um exemplo de visão de futuro, verticalidade e liberdade de determinação, realçada pelo contexto histórico em que foi proferida. Frei Bartolomeu, apenas perante tanto politeísmo pagão limitou-se a advertir e explicar: “isto he Poesia & fingimento (...) e por isso me pareceo o liuro de se imprimir. “
Ficou como um exemplo de visão de futuro, verticalidade e liberdade de determinação, realçada pelo contexto histórico em que foi proferida. Frei Bartolomeu, apenas perante tanto politeísmo pagão limitou-se a advertir e explicar: “isto he Poesia & fingimento (...) e por isso me pareceo o liuro de se imprimir. “
Amigo Manuel:
ResponderEliminarVim ao "Cogitar" e deparei com as tuas "divagações" (como lhes chamas) sobre formas de exteriorização da liberdade, em Camões, e a reacção do Santo Ofício. Li com imenso prazer, admirei a elegância da escrita, a fluidez das ideias e não pude ignorar a riqueza e subtileza da mensagem que tranmitiste. Está fantástico! Soberbo!
Quanto aos versos seleccionados, são belíssimos e eu diria que a luxúria que deles transborda está diafanamente envolvida por tamanho engenho e arte que dificultou seriamente o trabalho do Santo Ofício. Impossível engavetá-los. Seria uma perda lamentável e um sacrilégio face à Arte.
Mas eu "tiro o chapéu" à ousadia de Camões, no uso da liberdade de expressão, naquela época, e também o tiro (e de que maneira!) à coragem de Frei Bartolomeu na sua decisão. Também lhe admiro a visão, a sensibilidade, a inteligência perante a arte, o bom gosto e o humor... É evidente que tamanha sensualidade só poderia ser poesia e fingimento!... Brilhante argumento!
Em relação às tuas cogitações, aplaudo-as de pé, no conteúdo e na forma. Apesar de já nos habituares à excelência dos teus artigos, consegues sempre surpreender-nos. Parabéns e obrigada por estes magníficos momentos de reflexão sobre (e com) a arte, o direito e a literatura.
Um abraço.
Lídia Valadares
Lídia,
ResponderEliminarQue dizer das tuas palavras, quando o postado nem sequer foi sobre o que te disse que ia escrever. No momento de escrever, falou mais alto a conversa que tivemos sobre conceitos de liberdade expressa nos comentários. Mas insisto, que dizer das tuas palavras que tão bem absorveram intenções, juízos e sensibilidades, e se exteriorizaram numa linguagem rica de imagens e adjectivação? Que dizer ainda, finalmente, das tuas palavras, que relativamente ao escriva configuram a figura de estilo a nível semântico,tão cara a Camões ao empolar exgeradamente as suas percepções?
Às interpelações, singelamente:
1ª Apenas obrigado.
2ª Apenas referir que sempre ouvi que é melhor merecer as honras sem as receber, do que as receber sem as merecer.
Bom.
ResponderEliminarMuito muito bom.
Manuel:
ResponderEliminarDesculpa, mas falta uma terceira alínea:
3ª É de toda a justiça atribuir as honras a quem realmente as merece.
Um abraço.
Lídia Valadares